Cinco reflexões sobre a lei, o relativismo e o Brasil azul e rosa

Se tudo é relativo, o que nós estamos fazendo aqui? O alemão Max Weber, um dos pais da Sociologia (o outro é o francês Augusto Comte), diz que a ciência é a verdade para todos que querem a verdade e será cientificamente crível enquanto não for refutada. Isso explica muita coisa ou talvez não explique nada, uma vez que Sócrates, sem muita pompa e circunstância, rejeitou a ideia de que a verdade de um pode ser (ou não) a verdade de outro, porque, ora, tudo é relativo.

A considerar essa hipótese, não há mentira alguma em avistar Jesus Cristo na goiabeira, como afirma a ministra Damares Alves (Mulher, Família e Direitos Humanos). Mais: com relativismo e bom humor, antes este do que aquele, alguém poderia afirmar ter visto o que Maria Chiquinha foi fazer no mato ou então Luzia atrás da horta. Claro, não seria a mesma coisa.

O professor de História de Direito, Arthur Virmond de Lacerda, ainda há de me explicar, com a devida ênclise, o que o positivista Comte quis dizer com a máxima “tudo é relativo, eis a verdade absoluta”. Dito isso, me pego em cinco reflexões. A saber:

1 – Quantas mentiras há em uma camiseta com a seguinte inscrição: “100% negro” (ou “100% branco” – esta mais rara porque eugenista, ainda que ambas o sejam)? Resposta: duas, talvez três. Não há sopa genética sem ingredientes diversos; em tese, somos todos miscigenados e a raça, vale lembrar, é uma só: a humana. A exceção é  uma hipótese improvável. Alguém insulado em sua origem no continente africano que não tenha pegado carona no périplo de nosso ancestral comum há 6 milhões de anos.

2) A ministra Damares Alves não crê na evolução e na origem das espécies. Impõe verdade ao que, do ponto de vista científico, é fato não refutado; e dificilmente será. Ela prefere o criacionismo e a ideia de que o Gênesis não é uma alegoria do velho testamento. O homem foi criado há seis mil anos, o universo também. Cada dia que Deus laborou representa mil anos; no sétimo ele descansou. Os fósseis de dinossauros encontrados em escavações eram de dragões que, aliás, foram domesticados pelo homem e com ele viviam em harmonia. Foram extintos porque danaram-se em pecado  ou doença. O que fazer? Nem todos merecem o céu.

3) A lei de talião nunca foi revogada. A criação de códigos, a evolução legislativa, a prática do direito e da justiça, as condutas morais e religiosas, a fé ou a falta dela, jamais deixaram de tomar como referência o lema “olho por olho, dente por dente”. A ideia de reciprocidade, de correlação e de correspondência no crime e no castigo persiste até hoje, ainda que escondida sob o manto da prescrição e sanção, da presunção de inocência e do amplo direito de defesa. Nos EUA, os julgamentos que resultam em pena capital são recepcionados pela sociedade com satisfação evidente. A população regozija-se e, quando a execução é marcada, por vezes mais de uma década depois, a família se faz presente. Há alegria, há o sentimento de compensação e a sensação de que a justiça foi feita uma vez que devolveu a paz à vítima, subtraída do convívio com os seus. A premissa é a de que o espírito pode descansar e de que há um deus vingativo disposto a impor a ordem lançando mão da lei dos homens. Olho por olho,  dente por dente.

4) Os que são contrários à pena capital assinalam que ela não é compensatória; que há um perigoso precedente em legitimar a autoridade  do Estado para que decida sobre a vida ou a morte;  que o processo e as garantias recursais do condenado são muito dispendiosas aos cofres públicos e que trata-se de uma medida extrema que não diminui estatisticamente o número de homicídios e, além do mais, inspira o sentimento de vingança. Por fim, é cruel quando deveria ser humana.

Nesse ponto, temo que o relativismo de intenções tenha sido prejudicado com as primeiras nuvens cinzentas a confirmar a previsão de chuva no cair da tarde. Fiquemos então com o caso do ataque ao semanário francês “Charlie Hebdo”, em 7 de janeiro de 2015. Doze mortes e cinco feridos em ação de terroristas islâmicos não bastaram para que se levantassem argumentos a favor do massacre e fosse emitido um alerta a quem “brinca com fogo”. O “Charlie Hebdo” passou dos limites ao imprimir charges e caricaturas do profeta Maomé, afirmou um membro da prodigiosa esquerda brasileira.

A lei de talião, no caso das charges “profanas”, só se aplicaria se um fictício jornal muçulmano devolvesse a provocação publicando uma pilhéria do papa, do Grande Satã ou de Jesus Cristo. Há quem tenha citado as Cruzadas e a guerra contra os infiéis para justificar o massacre. Há quem tenha argumentado que o desrespeito ao profeta ou às crenças do povo oprimido do Oriente Médio não deveriam justificar ou dar asas à liberdade de expressão, de imprensa e de pensamento. Entre os que pensam dessa maneira está um cartunista que ora se veste de mulher, mesmo que demonstre desconforto e constrangimento com as saias e dificuldade em equilibrar-se sobre sapatos de salto agulha. Eis uma seta invertida nesse raciocínio; e ela não aponta para a direita ou para a esquerda, mas para baixo.

5) Criou-se certa celeuma em torno da declaração da ministra Damares Alves quando afirmou que “meninos vestem azul e meninas vestem rosa”. São as verdades de quem rejeita o evolucionismo, vê Cristo na goiabeira e julga que as cores definem o gênero masculino e feminino. Por ser pastora de uma igreja evangélica, ela rejeita os homossexuais e é capaz de apontar na Bíblia uma passagem em que um homem que deita-se com outro homem é julgado indigno e pecador. Para Damares, trata-se de verdade absoluta. Não há relativismo aqui, assim como não há relativismo em julgar que alguém de pele branca, vermelha, negra, amarela ou algo assim, ao vestir um abadá, pintar os cabelos, amarrar um lenço à cabeça, exibir um colar de contas coloridas ou algo assim, reste acusado de apropriar-se de cultura alheia. É a verdade segundo crenças. Aliás, a comparação, no primeiro e no segundo caso, admita-se, é por si um relativismo.

Cabe notar que o os milhões de votos que levaram um candidato conservador à presidência da República tem amparo no perfil do eleitor, afinado parte nos desígnios de uma vida humilde que Deus e a fé católica lhe impõem, parte no protestantismo que diz que tempo é dinheiro, que crédito é dinheiro, que dinheiro pode gerar dinheiro, que o bom pagador é dono da bolsa alheia porque a reputação é sua garantia, conforme ensina o puritano Benjamin Franklin, citado por Max Weber em “A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo” (Martin Claret, 2002).

Em seu estudo, Weber constatou que os países ricos capitalistas são predominantemente protestantes. É o que a teologia da prosperidade pregada nas igrejas neopentecostais – a Universal é o melhor exemplo – tenta incutir agora em seus fiéis. A oração e a fé podem enriquecer o homem sem o obstáculo do voto de pobreza do Jesus crucificado. É uma verdade que dispensa o relativismo frouxo dos católicos e apela ao conservadorismo do azul e rosa da ministra Damares Alves, visto como verdade inarredável.

De novo o relativismo é verdade enquanto não refutada. Cabe muito bem na crença de Damares, na afirmação de outro ministro que definiu seu cachorro como um ser humano  ou na aritmética de certo chefe da pasta da Educação que, em tempo recente, disse que 4 + 3 pode ser igual a 7, mas também pode ser igual a 6. Se o tal ministro seria na presidência que não levou, o que é na adição, certo estava Augusto Comte ao defender que os governos fossem entregues a biólogos e sociólogos. Jamais a matemáticos. Em especial, os relativos.

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